Apresentando o viés do sobrevivente
Os aviões de guerra abatidos, os macacos na máquina de escrever, outliers e o acrônimo desajeitado
Os aviões de guerra abatidos, os macacos na máquina de escrever, outliers e o acrônimo desajeitado
Se pusermos um número infinito de macacos diante de máquinas de escrever (de construção robusta) e os deixarmos bater a esmo nas teclas, temos certeza de que um deles sairia com uma versão exata de Ilíada. Examinando melhor, essa ideia poderia ser menos interessante do que parece à primeira vista, já que a probabilidade é muito pequena. Mas vamos levar o raciocínio um passo adiante. Agora que descobrimos esse herói entre os macacos, algum leitor apostaria suas economias em que o macaco escrevesse a Odisseia a seguir?
Alguma semelhança desta explicação com a frase batida (mas necessária) que aparece nas lâminas de investimentos: ‘A rentabilidade obtida no passado não representa garantia de resultados futuros.’?
Puxa, mas estamos aqui comparando um macaco-herói dentre infinitos macacos, que na mais pura SORTE organizou as letras ao ACASO e escreveu o mais antigo e extenso documento literário grego e ocidental existente com gestores de investimentos? Com hábeis, estudados, certificados e especializados gestores?
Sim. Quer dizer, não. Eu não, mas posso atribuir esta comparação a Taleb, que sem papas na língua, nos demonstra ao longo do livro Iludidos pelo Acaso que damos muito, mas muito pouco peso para os efeitos da sorte e acaso aos progressos, avanços e méritos que vemos por aí.
E ele faz esta comparação bem excessiva eu diria, não só porque o diverte imensamente tirar sarro de seus ex-colegas de profissão (os traders), mas porque ele quer chamar atenção para este ponto: quanto mais dados temos, mais probabilidade há de que nos vejamos afogados neles.
Os aviões da segunda guerra mundial
Para quem não conhece a história e ficou curioso com o subtítulo, segue a explicação.
Vamos começar com a biografia de Albert Wald, matemático com significativas contribuições na teoria de decisão, geometria e econometria, sendo um dos principais pesquisadores na área estatística análise sequencial.
Durante a Segunda Guerra, Wald fez parte de um grupo de pesquisa estatística e recebeu a tarefa de decidir onde aplicar fuselagem extra para proteger os aviões dos aliados contra os ataques dos nazistas. O grupo primeiramente analisou os furos de bala e poderia ter facilmente caído na conclusão que era necessário reforçar a fuselagem nos pontos de maior concentração de furos.

Mas foi Wald que se atentou ao fato de que a informação não estava totalmente presente. Havia toda uma sorte (alerta de trocadilho!) de aviões que nunca voltaram à base e que não estavam sendo contemplados na análise: os aviões abatidos, que certamente contariam uma história melhor sobre os pontos frágeis dos aviões e onde eram os alvos mais fáceis. A conclusão foi que o reforço deveria ser feito na cabine dos pilotos e nas turbinas, que aparentemente não foram tão atingidas nos aviões que estavam retornando para a base.
História bem legal né? Mas ainda carente de muitas evidências. Muitos dizem se tratar de uma lenda da internet, mas minha pesquisa me levou a um artigo que traz mais dados históricos, inclusive com a parte matemática que Wald e o grupo de pesquisa utilizou.
Mundo malévolo dos negócios
Segundo Taleb, no mundo dos negócios a força do acaso tem um efeito muito mais forte, e inclusive malévolo (gosto muito de sua escolha de palavras, por isso uso aqui as mesmas para trazer sua ênfase). Ele faz uma comparação com o mundo das artes, em que talento e prática levam a maestria. Mas, segundo ele, no mundo dos negócios, sorte e o acaso tem mais peso no sucesso.
Como vemos apenas os sobreviventes, temos uma percepção muito errada das chances. Confiar que Mark ou Bill são bilionários hoje, mesmo sem terem completado a graduação, e não contar a infinidade de pessoas sem graduação que não se tornaram bilionários, e além disso, sem contar com o peso do acaso na biografia de ambos seria extremamente injusto.
“Quanto maior o número de executivos, maior a probabilidade de um deles se sair excepcionalmente bem, por pura sorte. Raras vezes vi alguém contar os macacos.”
Malcon Gladwell escreveu um livro todo sobre este assunto, rico em histórias de sucesso que mostram como ninguém “se faz sozinho”. Segundo ele, todos os que se destacam por uma atuação de grande impacto são, invariavelmente, pessoas que tiraram vantagens de oportunidades incríveis e heranças culturais.
O livro se chama Fora de série — Outliers: Descubra por que algumas pessoas têm sucesso e outras não. Gladwell coloca luz nas coincidências extraordinárias de sucesso na cultura, e no ambiente, traz estas histórias em detalhes e conta como as pessoas que mudaram o mundo aproveitaram da sorte. Isso é o peso do acaso na biografia das pessoas ditas fora da curva.
Implicações cotidianas
Imagine-se andando em sua cidade e cruzando uma avenida você encontra um amigo ou familiar: “Que mundo pequeno!”, você diz, ou como dizemos aqui na minha cidade: “Curitiba é um ovo”, bem como está na foto no começo deste texto, tirada em um dos meus lugares favoritos para comer um pão com ovo e bacon.
Agora você pode analisar criticamente esta expressão de entusiasmo. Na verdade, nossa percepção é que encontros assim são raros, mas não o são. O mundo é muito maior que podemos analisar dentro do nosso espanto de encontrar aquele crush no mercado, justo quando você acredita que está desleixado.
Outra implicação descrita por Taleb leva em conta seu prazer em andar por muito tempo em livrarias analisando novos livros a se comprar. Com poucas informações para a tomada de decisão deve-se estar atento. E o que nos leva a comprar um livro desconhecido, que não tenha tido uma indicação prévia de um amigo que conhece nosso gosto literário? Partes estrategicamente escolhidas do livro que estão presentes na resenha e elogios, provavelmente de alguém famoso.
Fácil agora pensar em todas as partes não tão interessantes do livro não foram parar na resenha na contra-capa ou mesmo muito experts famosos que não teriam elogiado o livro tanto assim.
Nossa tomada de decisão é feita considerando atalhos que nosso cérebro criou e que nos deixam enviesados. Considerar que ele também não foi feito para analisar racionalmente probabilidades, é necessário para cada salto que damos.
Kahneman, psicólogo e Nobel de Economia por sua pesquisa inovadora em em economia comportamental, em seu livro Rápido e Devagar (escrito junto com seu colega Amos Tvesky), utiliza o interessante acrônimo WYSIATI (what you see is all that is, em tradução livre, o que você vê é tudo que há).
Kahneman descreve este acrônimo como desajeitado, acredito eu por ser grande e não formar nenhuma palavra de fácil memória.
No livro este acrônimo explica alguns atalhos ou heurísticas perigosas da nossa mente. Uma mente que só analisa aquilo que vê, ou aquilo que acha que viu. Lendo as forças do acaso eu me lembrava sempre do acrônimo que parece ser a cura para aquilo que Taleb descreve que nossa percepção desastrosa pode resultar.
Ou seja, não devemos tirarmos conclusões precipitadas com base em evidência limitada. Mais fácil escrever este texto do que conseguir praticar, então vamos todos pausar, respirar fundo três vezes (ou sete) antes de mais nada. Se é difícil o acrônimo do Kahneman, mais fácil lembrar dos macacos em máquinas de escrever, sempre que for tomar uma decisão.