Incerteza, roleta russa e bolas de cristal
Trabalhei mais de uma década na indústria financeira e quem me conhece sabe que eu sigo e menciono o Nassim Nicholas Taleb de tempos em tempos. Já falei sobre ele em alguns artigos que escrevi no passado, em palestras e workshops.
Trabalhando com riscos é fácil citar o autor que no dia do lançamento de seu último livro, sem qualquer tour ou promoção, 'misteriosamente' (o termo é usado por ele mesmo) teve seu livro listado como #2 nos mais vendidos da New York Times. Ele está sempre em uma lista 'top alguma coisa' neste mercado, mas como ele não dá importância a isso, não vou encher vocês de firulas.
E para quem não é do mercado financeiro (onde ele é largamente cultuado, posso ousar), eu o apresento: ele é o autor de diversos livros e artigos, passou mais de duas décadas assumindo riscos como trader quantitativo antes de se tornar um ensaísta e estudioso em tempo integral com foco em problemas práticos, filosóficos e matemáticos com chance, sorte e probabilidade. Seu foco é como diferentes sistemas lidam com a desordem.
Se você já ouviu falar nos termos Cisne Negro e Antifrágil em artigos, videos na internet ou em tweets por aí, é dele que estamos falando. Porém, segundo o próprio Taleb, a maioria das pessoas que escreve sobre ele, que o menciona e elabora seus conceitos, e pior, os aplica em situações diversas do dia-a-dia, sequer leu seus textos.
Incerto é incerteza em latim
E aí eu me vi estudando na mesma instituição que ele foi professor e pesquisador acadêmico, num curso de mestrado profissional na NYU, em gerenciamento de riscos. E mais do que ficar eufórica, eu fiquei morrendo de medo. E se eu não tivesse entendido nada? Afinal de contas, eu mesma tinha lido um livro só, em minha tradicional leitura dinâmica, e superficialmente tudo fazia sentido. Mas, e se não fizesse?
Tive a imensa oportunidade de assistir uma palestra dele no final de 2019 em que ele apresentou um mapa, ou uma genealogia de Incerto, seu ensaio filosófico e prático sobre a incerteza. São 5 livros publicados (até agora):
Iludidos Pelo Acaso: A Influência Oculta da Sorte nos Mercados e na Vida (2004)
A Lógica do Cisne Negro (2007)
O Leito de Procusto: Aforismos Filosóficos e Práticos (2010)
Antifrágil: Coisas que se Beneficiam com o Caos (2012)
Arriscando a Própria Pele (2018)
E o mapa mostra seus conceitos distribuídos em 5 grandes disciplinas: filosofia, matemática, ciências sociais, teoria jurídica e o mundo real.
Que tal? Te deu vertigem aí também?
Desde este fatídico 25 de Outubro de 2019, quando Nassim Taleb em pessoa apresentou este mapa em um auditório da NYU, enquanto falava sobre as consequências estatísticas das caudas longas, me peguei pensando na complexidade destes conceitos e em como tanto a incerteza quanto a certeza cega são amedrontadoras e perigosas. Corta para alguns meses depois e sabemos o motivo.
Entretanto, não foi na pandemia que pude refletir mais sobre o Incerto. Ouvi o audio-livro Antifrágil e adquiri o O Leito de Procusto, e completei a minha estante com todos os livros deste ensaio sobre a incerteza. Mas foi só em 2023 que eu decidi voltar aos meus estudos e me propus a ler o Incerto em sua ordem de publicação, mesmo o Taleb dizendo em seu site que eles podem ser lidos em qualquer ordem.
E desta vez nada de leitura dinâmica. Não preciso usar qualquer conceito rapidamente em um workshop ou para abrir um treinamento, quero entender de fato. Porque, como mesmo tenho lido ele repetir, temos memória muito curta e raramente aprendemos com a nossa história.
Uma realidade perversa
O primeiro livro, Iludidos pelo Acaso já explodiu minha cabeça um milhão de vezes. E gostaria mesmo de reforçar que acredito que este sentimento não seria válido se eu tivesse começado a lê-lo sem antes ter efetivamente trabalhado tentando prever riscos.
Trabalhei com gerenciamento de riscos por quase toda a minha carreira e consegui começar a entender racionalmente a angústia que eu sentia ao tentar equilibrar os erros com a previsibilidade, ou em linguagem do dia-a-dia da minha função: ter uma bola de cristal. Evitar só as fraudes, deixar passar somente as transações boas, por exemplo. Errar nada. Nunca.
O gerador do risco prestes a se materializar, segundo Taleb, raramente é possível ser visto a olho nu. Seria como, em sua própria analogia, jogar roleta russa em uma realidade muito mais perversa.
Explico: em uma roleta russa, temos uma bala apenas, nas seis câmaras de um revólver e por isso, a bala dispara com mais frequência. Nossa memória é curta, mas aqui ela se lembra do estrago porque ele acontece muitas vezes.
Porém, nesta realidade cruel do nosso exemplo, estaríamos jogando roleta russa com um revólver com centenas ou milhares de câmaras. Em pouco tempo a pessoa jogando este jogo se esquece que existe sim uma bala lá dentro. Um falso sentimento de segurança paira no ar. E então este evento acaba ganhando um apelido bonito (e vendável) de baixo risco.
O estranho cargo que não deveria existir
No capítulo 2 do livro ele fala especificamente do “estranho cargo de gerente de riscos”, de uma função que
(…) se espera que acompanhe a instituição e verifique se ela não está muito envolvida no negócio da roleta russa. E óbvio que, tendo se queimado algumas vezes, a ideia é de que deve haver alguém que tome conta do gerador, a roleta que produz lucros e perdas.
Ele explica como estes cargos nem deveriam existir, pois além de serem acusados de subtrair ao acionista um dinheiro com oportunidades perdidas, não possuem amplo poder para bloquear inteiramente o risco, e são responsabilizados quando o risco de fato se materializa.
Como um médico dividido entre dois tipos de erros, o falso positivo (dizer ao paciente que ele tem câncer quando não tem) e o falso negativo (dizer ao paciente que ele está sadio quando ele tem câncer). Os gerentes de riscos precisam encontrar o equilíbrio com a abertura inerente para certa margem de erro em sua função.
Este artigo não é uma resenha do livro, portanto o deixo incompleto, com apenas as ideias dos primeiros capítulos. Porque ao lê-los eu tive a impressão de estar revisitando a minha carreira com outros olhos. E queria trazer aqui logo para dividir com uma audiência mais ampla do que somente eu e as vozes da minha cabeça ;)
A permissão de Taleb e o meu convite
Poderia ter dado uma impressão de que minha experiência teria sido este angustiante e eterno equilíbrio de erros do médico que dá falsas informações aos pacientes, mas me deixou numa posição de maior entendimento deste papel, que ainda acredito ser fundamental nas instituições.
Me descobri não mais como gestora de riscos, equilibrando a falsa noção de estar conseguindo mapear e antecipar tudo. Quando se trata de risco e probabilidade, Taleb argumenta, e também muitos autores de economia comportamental, que nosso cérebro é muito superficial.
Tanto a noção de percepção, quanto a detecção de risco são processados pelo lado do cérebro que processa emoções e não em sua parte racional, e isso comprova a chamada Teoria do Risco como sensação.
Abençoada página 61 que me autorizou a continuar acreditando que minha carreira foi de sucesso por ser muito mais de feelings do que de aspectos racionais, porque não sou nada técnica, analítica e das exatas.
Brincadeiras a parte, possuo, depois desta leitura, ainda mais forte em mim, a crença que profissionais diversos devem compor esta cadeira e este departamento nas instituições financeiras. O conhecimento que nossa percepção, detecção e gestão do risco passa por sensações e emoções, deve ser de conhecimento mais massificado nesta indústria. O aspecto comportamental deve ser uma matéria intrinsecamente conectada ao dia-a-dia deste profissional e das partes interessadas.
Por fim, este texto é um convite para a discussão sobre os conceitos que compartilhamos e aplicamos como profissionais de riscos. Que sejamos profundos na aplicação dos conceitos que ouvimos por aí. Porque assim podemos também ser críticos a eles.
Você, nesta cadeira, também se considera um estranho no ninho?