Trapacear é mais fácil quando se está longe do dinheiro
Como racionalizamos as nossas trapaças e as coca-colas no campus do MIT
Estou fazendo um curso de Liderança Inclusiva por meio das Ciências Comportamentais na LSE, a Escola de Economia e Ciências Políticas de Londres. E no módulo da semana passada mergulhamos nas profundezas de se humanizar o risco: considerar não só os riscos econômicos e financeiros, mas o risco de que ações e comportamentos humanos tragam prejuízo para outras pessoas e para as empresas que trabalhamos. Pensamos aqui em fraude, má conduta, assédio, discriminação, absenteísmo, incivilidade, negligência.
E aí eu estava em casa, pois se vocês ainda não sabem, eu trabalhei por uma década com gestão de riscos, fraudes, lavagem de dinheiro.
No módulo do curso compreendemos mais sobre os três pilares que possibilitam ou facilitam uma má conduta, que no mundo da fraude é conhecido como hipótese de Cressey ou triângulo da fraude.
Triângulo da Fraude
Donald Ray Cressey foi um sociólogo e criminologista americano que fez contribuições ao estudo do crime organizado, sociologia do direito penal e crimes do colarinho branco. Em seu livro Dinheiro alheio, um estudo em psicologia social do peculato, de 1953, ele discorre sobre estes três pilares:
Oportunidade: o fraudador enxerga uma possibilidade de efetuar o ato fraudulento com a chance mínima de ser pego
Racionalização: ele justifica sua atitude com alguma forma de racionalização de seu ato ('todos fazem', 'estou roubando de ricos/bancos')
Pressão: alguma pressão é identificada para que o fraudador cometa o ato, seja uma pressão por pares, seja uma pressão financeira.
O que Cressey e vários estudiosos depois dele chegaram a conclusão é que estes três elementos vão se somando e escalando: uma pequena oportunidade pode virar um delito, e com a racionalização o mau comportamento começa a ficar melhor aceito internamente.
Mas e a coca-cola no MIT?
Quando falamos de fraude, e dos conceitos de risco comportamental por detrás deste tema, ele parece distante de nós, pessoas de bem, respeitáveis. Mas rapidamente me lembro dos experimentos do Dan Ariely, explicados em detalhes no livro Previsivelmente irracional: As forças invisíveis que nos levam a tomar decisões erradas.
Suponha que sua esposa ligue para você no trabalho. Sua filha precisa de um lápis vermelho na escola no dia seguinte. "Poderia trazer um para casa?” Até que ponto você se sentiria à vontade para pegar um lápis vermelho do trabalho para sua filha? Nem um pouco à vontade? Completamente à vontade? Moderadamente à vontade?
Vou fazer uma outra pergunta. Suponha que não haja nenhum lápis vermelho no trabalho, mas você pode comprar um lá embaixo por 10 centavos. E a caixa de despesas eventuais de seu escritório foi deixada aberta (…). Suponha que não tivesse nenhum trocado e precisasse dos 10 centavos. Você se sentiria à vontade para pegá-los? Isso seria certo?
Ariely começa o capítulo 14 do livro explicando como lidar com dinheiro nos torna mais honestos e quanto mais nos afastamos dele, lidando com objetos não monetários como mercadorias, tokens, até cartões de plástico, nos afastamos das lógicas do que poderia ser considerado certo ou errado.
No experimento das coca-colas no MIT, ele comparou o roubo de cocas geladas sem dono (nem bilhete) deixadas nas geladeiras comunitárias do campus com dinheiro vivo deixado nas mesmas geladeiras. As cocas? Todas sumiram em 72 horas. Já o dinheiro, permaneceu intocado.
Eis o meu argumento: trapacear é bem mais fácil quando se está a um passo de distância do dinheiro.
Segundo Ariely pequenas contravenções como pegar um lápis do escritório poderiam ser facilmente racionalizáveis (olha o triângulo aí gente!): ‘suprimentos de escritório fazem parte de nossa remuneração’ ou ‘isso todo mundo faz’. E para entender mais a fundo o comportamento da desonestidade, ele e colegas planejaram e implementaram mais estudos para entender este tema.
O estudo mais conhecido foi o de resolução de testes de matemática com 20 questões, que começaravam do mesmo jeito, mas terminavam com três diferentes possibilidades:
os estudantes realizavam o teste, entregavam seus gabaritos, o pesquisador computava suas notas e lhes pagava 50 centavos por resposta certa;
os estudantes realizavam o teste, picavam seus gabaritos e falavam seu score ao pesquisador que lhes pagava 50 centavos por resposta certa;
os estudantes realizavam o teste, picavam seus gabaritos, falavam seu score ao pesquisador que lhes dava uma ficha. Esta ficha poderia ser trocada por 50 centavos por resposta certa cerca de 4 metros adiante da sala de experimentos.
Os resultados são incríveis (e amedrontadores):
O primeiro grupo não teve como trapacear e teve como acerto médio 3,5 perguntas. O segundo grupo que pôde dizer qual era seu acerto sem mostrar o gabarito alegou ter acertado em média 6,2 perguntas. Já o terceiro grupo, acerto médio de 9,4.
Isso significa que as fichas ‘liberaram’ as pessoas de suas coerções morais a tal ponto que a minoria trapaceou o máximo possível.
Se fichas facilitam uma trapaça, imagine com o mundo atual de transações virtuais, pix, picpay, até mesmo nossos cartões virtuais que usamos em compras online? Aposto que você concluiu o mesmo que Ariely:
Todas estas transações eletrônicas, sem troca física de dinheiro, poderiam facilitar a desonestidade das pessoas - que jamais se questionariam ou reconheceriam plenamente a imoralidade de suas ações.
E nas empresas? Conclusão final sobre trapaça nas organizações
Os insights que trago a seguir nos mostram como este tema toca as empresas que trabalhamos e como o risco comportamental pode ser mitigado.
Comportar-se mal no local de trabalho é uma decisão da pessoa que comete o ato e que instintivamente pondera o custo, benefício e risco de ser descoberto. E no geral, quanto mais as pessoas se identificam com alguém, mais elas acreditam que seu comportamento é socialmente aceitável, independentemente de quão negativo seja. Relações positivas com colegas de trabalho podem levar a comportamentos negativos ou conduta indevida quando são percebidas como um favor a um amigo (O’Boyle, Forsyth & O’Boyle, 2011).
É mais provável que indivíduos que compartilham afinidade e têm baixa distância social (são mais parecidos) influenciem o comportamento um do outro. Novos colaboradores, recém contratados, em particular, são suscetíveis à corrupção porque aprendem com seus colegas que certos comportamentos são tolerados (Barr, Lindelow & Serneels, 2009).
Portanto, a diversidade no local de trabalho é um potencial inibidor para comportamentos negativos e conduta indevida. Ao contratar talentos diversos, um líder inclusivo está mecanicamente reduzindo a probabilidade de conduta indevida e risco comportamental.
Mais um ponto para a diversidade e inclusão nas organizações. E você, líder? Um líder inclusivo em uma empresa diversa presta atenção no fator risco humano para mitigar o risco comportamental. Olho vivo e faro fino, como dizia a dupla de detevites daquele desenho animado que eu sei que você se lembra bem. Demonstrei a idade, possivelmente, então dá um google aí :)
nunca havia pensado em como essa "desmaterialização" do dinheiro (pix, picpay, etc) facilita a fraude mas é muito real mesmo! percebo que isso se aplica até no momento de gastar, por exemplo: aqui na Albânia, precisei trocar dinheiro e então estou pagando tudo em espécie e penso 10x mais agora que a compra envolve uma diminuição tangível, que eu posso ver acontecendo, do que quando é simplesmente encostar o cartão. então imagina o que isso não gera quando o assunto é trapaça né? adorei a reflexão e a conclusão sobre como a diversidade pode mitigar isso nas organizações!